amnésia infantil

Causas da Amnésia Infantil: esquecer-se da infância é normal?

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Hoje falaremos sobre a amnésia infantil. Mais do que depender exclusivamente do relato dos pais, irmãos ou de qualquer terceira pessoa que tenha nos acompanhado nos anos inaugurais da primeira infância, a maioria de nós gostaria de saber por si mesmo como foi exatamente os nossos primeiros dias, meses e anos após deixar o ventre materno.

No entanto, este é um luxo que nenhum de nós pode ter. E porquê isso não nos é permitido, é uma resposta que até hoje, as mentes mais engenhosas do mundo da ciência ainda estão tentando descobrir.

Entendendo sobre a amnésia infantil

Num artigo publicado em Junho de 2022, no The Conversation, a investigadora Vanessa LoBue, da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, afirmou que ‘‘ainda não está claro se experimentamos a amnésia infantil porque não conseguimos formar memórias autobiográficas, ou simplesmente porque não temos como recuperá-las.

Ninguém sabe ao certo o que acontece, mas os cientistas têm alguns palpites.’’ Entre tais palpites, a também professora de psicologia explica ‘‘que as memórias autobiográficas exigem que você tenha algum senso de si mesmo. Você precisa ser capaz de pensar sobre o seu comportamento em relação a como ele se relaciona com os outros.’’

Seguidamente, LoBue acrescenta que ‘‘a outra explicação possível para a amnésia infantil é que, como os bebês não têm linguagem até mais tarde no segundo ano de vida, eles não conseguem formar narrativas sobre as suas próprias vidas que possam lembrar mais tarde.’’

O hipocampo e a amnésia infantil

Ela acrescenta ainda que o ‘‘hipocampo, que é a região do cérebro amplamente responsável pela memória, não está totalmente desenvolvido no período da infância.’’

Comecei a pensar neste assunto, precisamente quando me tornei pai, em Julho de 2019. Ao longo dos meses seguintes, tentar entender porquê o meu filho me esqueceria se eu me ausentasse por uns anos, apesar do tempo que até então já tínhamos passado juntos, tornou-se o meu maior desafio, gerando debates acalorados na minha cabeça, até maio de 2020, quando desvendei este mistério.

Três meses depois do nascimento do Ericson Gabriel, eu estava engajado num trabalho académico sobre a autoestima. Na época, uma das minhas principais fontes de pesquisa era o livro de David Statt, Introdução à Psicologia, que fazia muitas afirmações sobre a mente e o comportamento das crianças.

Os comportamentos

Embora as afirmações de Statt fossem muito sólidas e, sobretudo, baseadas em evidências, eu estava determinado a comprovar algumas delas, o que me levou, durante os meses que se seguiram, a observar milimetricamente o comportamento do meu pequeno, para ter certeza de que o pensador britânico estava realmente certo em tudo o que disse.

Neste olhar clínico redobrado que passei a dedicar ao meu bebê, aliado à vontade exacerbada de desvendar os motivos da falta de memória de longo prazo nos primeiros anos da infância, um elemento passou a concentrar grande parte da minha atenção – a sua ignorância – sobre si mesmo, sobre as outras pessoas e sobre as coisas, o que me fez refletir sobre os motivos que levam um adulto saudável a esquecer.

Por conseguinte, passei a raciocinar: se vamos a uma instituição pública tratar um documento qualquer e somos atendidos normalmente, sem que ocorra nada fora do comum, as chances de nos lembrarmos do atendente, algumas horas, dias, semanas, meses ou dois anos depois, são extremamente baixas.

Lembranças e a amnésia infantil

Entretanto, se no processo simpatizarmos com a pessoa, conhecermos o seu nome, morada e obtermos outras informações de base, as chances de nos lembrarmos dela, horas, dias, semanas, meses ou dois anos depois, são altas. E isso me fez ver que a necessidade de conhecer para não esquecer se aplica a todas as idades.

Esse conhecimento, que em certa medida, perpetua as lembranças, surge a partir de três fatores: linguagem – que é um dos instrumentos primários da aprendizagem, e no exemplo anterior, conhecer o atendente, implica obrigatoriamente o recurso a ela.

E isso, por conseguinte, remete para a capacidade de conhecer as coisas concretas e abstratas que as palavras visam representar – a cognição, o segundo fator. E porque todas as nossas lembranças estão ligadas a nós, de alguma forma, não é possível conhecer o atendente, ou qualquer outra pessoa, sem que tenhamos a mínima consciência de nós mesmos – o que nos leva à autoconsciência, o terceiro fator. Logo, fica evidente que o desconhecimento em relação à língua, aos elementos à nossa volta e de nós mesmos, é o que está na base do esquecimento que ocorre nos primeiros anos da infância.

O desenvolvimento da linguagem

Ou, dito de outro modo, o desenvolvimento da linguagem, o desenvolvimento cognitivo e a construção da autoconsciência são os fatores por trás do surgimento da memória de médio e longo prazo, que, por conseguinte, põem termo ao fenómeno conhecido por amnésia infantil. Há uma semana, enquanto polia o ensaio que se segue, visando prepará-lo para ser apresentado a comunidade científica internacional, decidi fazer uma ronda na internet a fim de me certificar de que eu ainda era, como gostava de pensar desde o início, a única mente que sabia os segredos da fragilidade da memória da primeira infância.

Porém, infelizmente para mim, deparei-me com alguns artigos – como o texto de LoBue, que só tive acesso na semana passada – que se aproximaram das minhas conclusões, mencionando dois dos três elementos que apresento como estando entre as prováveis causas da amnésia infantil. Contudo, quero reafirmar que qualquer semelhança entre as outras pesquisas e os dados que apresento aqui, é pura coincidência.

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    Pois, como mostro nas próximas páginas, escritas em Maio de 2020, cheguei a conclusão de que o desenvolvimento da linguagem, o desenvolvimento cognitivo e a construção da autoconsciência estão na base do surgimento da memória de longo prazo, por conta própria, isto é, através das minhas reflexões a volta do meu relacionamento com o meu filho. Mas, uma coisa é certa: esta conclusão é óbvia para qualquer um que analisa o fenômeno da amnésia infantil a partir do ângulo em que eu analiso.

    A amnésia infantil e o cérebro

    Por outro lado, ao não mencionar qualquer elemento orgânico associado aos fatores que apresento, esta abordagem não pretende negar o impacto da anatomia da cabeça e pescoço durante os primeiros anos da infância.

    É evidente que há toda uma envolvente orgânica que dá lugar aos fenômenos complexos da mente. Nesta abordagem, as estruturas da cabeça, particularmente do cérebro, aparecem, mas de forma subentendida, nos processos orgânicos que desencadeiam a linguagem, a cognição e a autoconsciência. Além do mais, o cérebro humano, nos mais variados estágios de desenvolvimento, é um órgão em permanente mudança.

    Assim, o texto que se segue, preserva a generalidade das palavras, os conceitos e os exemplos, tal como concebi há três anos, para reafirmar a sua originalidade.

    As causas da amnésia infantil

    Porque as nossas memórias mais antigas remontam apenas aos três ou aos quatro anos? Quais são os fatores por trás da amnésia infantil? O meu envolvimento nesta matéria começou há dez meses, quando o meu primogénito acabava de chegar ao mundo. Nas minhas primeiras semanas como pai, eu e o pequeno Erickson Gabriel passávamos muito tempo juntos.

    Na maioria das vezes, eu o recebia do colo da mãe aos prantos, quando esta encontrava-se completamente exausta, por passar a maior parte da noite anterior acordada, tentando apaziguá-lo. Para ter sucesso ao tentar tranquilizá-lo, normalmente o deitava sobre a parte medial do meu antebraço direito, e ele, instigado pelo instinto primário de sobrevivência, agarrava-me firmemente. E como num baloiço, jogava-o de cima para baixo, durante largos instantes, até eu ser tomado pela exaustão.

    As pessoas ao redor, geralmente o meu falecido pai e sua esposa, não escondiam a sua enorme apreensão, deixando claro o quanto desaprovavam uma brincadeira demasiado brusca para um recém-nascido. Porém, a verdade é que a brincadeira, embora rústica, funcionava, sendo muitas vezes, o único jeito de acalmar os seus ânimos. Outras vezes, para mantê-lo tranquilo, eu o deitava em cima de mim. Desta forma, todo o seu tronco e os seus minúsculos membros cobriam apenas uma pequena parte do meu abdómen. Era a cabeça que ocupava um dos lados do meu peito.

    O olhar persistente

    Em várias dessas ocasiões, ele levantava o pescoço e dirigia o seu olhar persistente para o meu rosto. Também houve momentos em que as suas mãozinhas não se casavam de apalpar a minha face, como se estivesse intrigado com o que os seus receptores visuais estavam captando.

    Era justamente aqui, que me perguntava porquê ele jamais se lembraria destes momentos, um tempo depois. Na época e durante os meses que se seguiram, eu não estava feliz com o meu matrimónio. Pretendia sair de casa, e o meu primeiro pensamento era deixar o país, sem ter uma data certa para voltar a vê-lo novamente.

    No entanto, saber que ele esqueceria imediatamente todas as horas maravilhosas que passamos juntos, me dissuadia a sacrificar esta ideia. Mas, ao aceitar que o fenómeno do esquecimento nessa idade era inevitável e que não havia nada que eu pudesse fazer, prometi a mim mesmo que encontraria o motivo.

    A memorização

    Até onde sabia, ninguém tinha uma resposta, nem mesmo as mentes mais abalizadas no assunto. O único fato conhecido era que com meses ou com um ou dois anos de vida, nenhum ser humano poderia se lembrar de nada a médio ou longo prazo, fosse o que fosse. Também sabia que já haviam sido feitos imensos estudos sobre a memória. Eu até tinha alguns livros que continham imensos exercícios de memorização, porém, eram todos omissos no que dizia respeito à idade em que a memória de longo prazo era ativada.

    Tinha também consciência de que provavelmente naquela altura estariam a ser realizados estudos que visavam desmistificar as razões deste fenômeno. Quando o Erickson completou seis meses, os nossos momentos juntos ficaram mais intensos, pois brincávamos de várias maneiras, durante largas horas.

    Nestas ocasiões, continuei me questionando, se porventura eu sumisse por alguns anos, ele me esqueceria totalmente. Embora eu já soubesse que as crianças têm memória de curto prazo, a resposta permaneceu negativa. Com o passar dos dias, ficávamos cada vez mais familiarizados, e não tinha dúvidas de que ele me via como alguém especial. Mas, mesmo assim eu sabia que ele ainda não tinha consciência sobre quem eu era de verdade na sua vida.

    A amnésia infantil e as demonstrações de afeto

    Contudo, ele demonstrava ter um certo carinho por mim, várias vezes durante o dia, sobretudo quando em determinados momentos trocava a mãe para ficar comigo; estas demonstrações de afeto também ocorriam quando sacrificava a mama, os brinquedos, a comida e todas as outras coisas que valorizava para se agarrar a mim.

    De qualquer forma, a resposta para a questão se ele se esqueceria de mim e dos nossos momentos juntos se eu me ausentasse por um tempo ainda permanecia óbvia.

    E aqui, vale a pena abrir um parêntese – que exploro mais elaboradamente no meu próximo livro sobre a autoestima – para dizer, com base no que tenho observado, que as crianças, pelo menos até aos três anos, são incapazes de experimentar qualquer tipo de amor que não seja por si mesmas.

    Um sentimento profundo

    É verdade que em alguns momentos elas parecem se importar profundamente com alguém além delas, como pai, mãe ou outra pessoa ao seu redor, mas isto é apenas um amor aparente, porque ninguém pode nutrir um sentimento tão profundo e complexo como aquele que os gregos denominaram como “storge”, por alguém que desconhece totalmente.

    Para ser mais claro: as crianças não amam ninguém, senão a si próprias, certamente porque não podem amar, e provavelmente pelas mesmas razões que não podem ter memórias de longo prazo. Entretanto, com o tempo, conforme observava o comportamento do meu pequeno, a resposta para o motivo pelo qual ele não conseguiria se lembrar de mim caso eu me afastasse temporariamente de sua vida, foi se tornando óbvia.

    Para o caro leitor, para que a resposta também comece a se tornar acessível para você, pergunte-se quais são os nomes mais difíceis de memorizar. Com certeza, são aqueles que nunca ouviu antes, ou aqueles que lhe são pouco familiares.

    A amnésia infantil e a autoconsciência

    Portanto, dificilmente conseguiremos lembrar de coisas ou situações com as quais não estamos suficientemente familiarizados. Podemos pensar nisso como as dificuldades que encontraremos naturalmente ao tentar reconhecer o caminho de casa vindo de um lugar que nunca visitamos antes. De qualquer forma, para as crianças a situação é muito mais complexa.

    Cheguei a este raciocínio a partir das experiências do Erickson com a água. Quando começou a gatinhar, muitas vezes ia até uma torneira que tínhamos no quintal. No princípio, ele apenas procurava ficar em pé nela. Mais tarde, ao ver uma coisa a sair dela, sempre que eu ou a sua mãe pressionávamos a maçaneta para baixo, ele passou a pressionar também, o que, por conseguinte, fazia a água escorrer pelo chão.

    Muitas vezes, curioso com o que os seus olhos viam, tentava segurar o líquido com as mãos, como se fosse um sólido. Ele continuou a fazer isso até algumas semanas atrás, quando mudamos de casa, no seu oitavo mês. Essa experiência me fez perceber que três fatores importantes contribuem para a formação da memória de médio e longo prazo nas crianças: desenvolvimento da linguagem, desenvolvimento cognitivo e a formação da autoconsciência.

    Desejos e sentimentos

    O desenvolvimento da linguagem verbal possibilita a atribuição de nomes, a formação de conceitos, aquisição de conhecimento, bem como a percepção e a expressão de desejos e sentimentos.

    Embora as crianças comecem a pronunciar as primeiras palavras no final do primeiro ano, e daí vão aprimorando a sua competência linguística, ao migrarem aos poucos da linguagem receptiva para a linguagem expressiva – é a partir dos três anos que elas começam a expandir significativamente o seu vocabulário, ganham algum domínio das estruturas gramaticais complexas e, por conseguinte, adquirem maior fluência da língua materna, permitindo-lhes não só emitir enunciados mais elaborados, como também compreender com mais clareza o significado das palavras que lhes são dirigidas.

    Já o desenvolvimento cognitivo, responsável pelo pensamento, é o que atribui significado concreto e abstrato às palavras através dos processos de categorização, diferenciação e dedução. Assim, ao se referir a uma mesa, uma criança de três ou quatro anos entende com certa precisão o que é e para que serve a mesa, além de saber distingui-la da cadeira. Nesta fase, a criança também sabe diferenciar o irmão, do pai ou da mãe; e passa a saber exatamente o seu próprio nome.

    Uma entidade independente

    Portanto, o desenvolvimento cognitivo permite à criança assimilar informações, perceber os fenómenos que ocorrem no seu meio envolvente e tirar conclusões minimamente lógicas. A formação da autoconsciência, por seu lado, é o que permite à criança situar-se no tempo e no espaço como indivíduo, ou sujeito próprio. Sujeito próprio no sentido de ser uma entidade independente, não atrelada a nenhuma segunda ou terceira pessoa.

    Por outras palavras, é a consciência de si que permite a criança perceber que a sua existência além de real, é única, e que o aqui e o agora não são tudo que existe. Há realidades complementares e alternativas, como o ali e o amanhã. Assim, esta coalizão de competências é o pano de fundo da memória de longo prazo. Ou seja, quando começamos a conhecer os nomes das coisas, a compreender o seu significado e a tomar consciência do seu impacto particular nas nossas vidas, abrem-se naturalmente as janelas da grande memória, permitindo-nos registar vários acontecimentos a longo prazo.

    Pensemos, por exemplo, no que faria uma pessoa se lembrar da pasta que levava para o jardim de infância quando tinha apenas três ou quatro anos. A lembrança surge, em primeiro lugar, do fato de a pessoa naquela época saber o que a expressão “pasta” representava em termos reais.

    A amnésia infantil e a consciência

    Em segundo, o que era o artigo em termos de características e utilidade. E por fim, por compreender precisamente o impacto que o bem teve na sua vida, ou ter consciência das experiências que a mesma terá ocasionado na ocasião. Dito de outro modo, para que a pasta se torne de fato uma memória de longo prazo, além da experiência e da capacidade verbalizar esse substantivo, é necessário que pelo menos parte das características do artigo, como a cor, a textura, as ilustrações, o tamanho e o peso, tenham sido conhecidas pela criança. É por conta disso que quando rebuscamos muitos dos eventos do nosso passado não apagado da memória, as cores, os sons, as formas e às vezes até a temperatura do ambiente distante são imediatamente convocados à consciência.

    O conhecimento que temos destes detalhes, na grande maioria dos casos, é tão antigo quanto as memórias que pretendem caracterizar. E excepcionalmente, apenas uma ou outra característica é que tendemos a compreender mais tarde o seu verdadeiro significado, que desconhecíamos na época. Portanto, isto, mais uma vez, comprova que é do conhecimento linguístico e simbólico que temos das coisas, associado à experiência pessoal, que surgem as memórias.

    Desta forma, podemos dizer que a esmagadora maioria das pessoas, para não dizer todas, não consegue recordar os acontecimentos mais remotos da sua infância – desde o nascimento até pelo menos o terceiro ano, porque nesta fase a mente ainda não está madura o suficiente para decodificar as informações captadas pelos seus receptores sensoriais e medir seu impacto.

    Significados concretos

    Para ser mais claro, se eu deixar o Erickson agora e voltar dentro de alguns anos, ele não se lembrará de mim, e tão pouco dos nossos momentos juntos – porque nessa altura, mesmo que ele tenha começado a me tratar por ‘‘papá’’, não faz ideia do que isso significado exatamente, bem como não tem consciência de si mesmo.

    E mesmo quando completar dois anos, se eu vier a deixá-lo, a amnésia ainda se encarregará de passar uma borracha na sua memória, limpando todos os nossos momentos juntos, porque a sua noção das coisas e de si mesmo ainda permanecerão vagas.

    Em uma palavra, eu diria que a amnésia infantil surge da ignorância da criança – uma ignorância sobre as palavras, sobre o significado concreto e abstrato das palavras, e sobre si mesma.

    A amnésia infantil e o conhecimento

    Por exemplo, embora aos dois anos uma criança já tenha alguma noção sobre o seu pai, ainda é tudo muito vago. É aos três e quatro anos que ela percebe que o pai é alguém que protege, cuida, brinca, conta história, leva para cama, comprar coisas, dá carinho e leva ao shopping.

    Mas mais importante é que nesta idade a criança tem a mínima noção do que significa shopping, brincar, dormir, comprar e contar história. Esse conhecimento, articulado à consciência da maneira como as coisas e as pessoas a impactam em determinadas situações, é o material que permitirá a sua mente perpetuar as lembranças. Entretanto, quando analisamos exaustivamente este tripé que sustenta a memória de longo prazo, fica claro que o esquecimento dos bebés por falta de conhecimento de vária ordem, não é uma excepção, porque o mesmo acontece com os adultos.

    Uma prova nesse sentido é que, por exemplo, os poucos conceitos do ensino médio que ainda hoje, dez ou quinze anos depois, memorizamos e podemos recitar com certa precisão, tal como aprendemos, são aqueles que assimilamos profundamente na época, mas muito mais ainda aqueles com os quais tivemos alguma experiência marcante.

    O esquecimento e a amnésia infantil

    De qualquer forma, esta explicação, embora lógica, pode levantar outras questões, tais como: por que as crianças esquecem pessoas e coisas mesmo depois de atingirem a idade em que a sua memória de longo prazo já está ativada?

    Como é óbvio, as crianças não são as únicas pessoas que esquecem as coisas. Até mesmo adultos saudáveis e no auge da idade, também estão fadados a não se lembrar de tudo, mesmo quando se trata de informações que consideram relevantes. E isso acontece porque o subconsciente possui regras ou padrões de armazenamento próprios, embora hoje existam certas técnicas que visam reforçar a capacidade de memorização.

    Outra explicação plausível para o esquecimento não associado à amnésia infantil é que apesar de desconhecermos a capacidade de armazenamento da mente, esta não é totalmente ilimitada, ou pelo menos não do modo como concebemos o ilimitado. Por isso precisamos esquecer certas coisas, para podermos nos lembrar e assimilar outras.

    A construção da autoestima

    Estes fatores que acabamos de avançar, também são a base da construção da autoestima, visto que para a maioria das crianças abaixo dos três anos, as palavras ainda fazem pouco ou nenhum sentido, e o ‘‘eu’’, se apresenta como algo confuso, que elas não sabem ao certo o que é. Um fator que mais uma vez vale reforçar é a linguagem. Geralmente quando pretendemos contar, oralmente ou por escrito, alguma ocorrência do nosso passado, recorremos ao texto descritivo, para permitir que os nossos interlocutores estejam o mais por dentro do acontecimento.

    Sendo assim, como um menor de um ou dois anos pode descrever uma memória se na altura do acontecido desconhecia praticamente tudo, desde nomes, datas, pessoas, coisas e lugares?

    Alguém pode retrucar afirmando que até mesmo os adultos não conhecem tudo ao seu redor. É verdade. Mas ainda assim, os adultos podem descrever os seus acontecimentos com profunda precisão.

    O processamento e a amnésia infantil

    Isso porque, quando não conseguem especificar os nomes das pessoas, o tipo de acontecimento e a forma exata dos objetos que participam do que pretendem contar, recorrem a certos termos que funcionam como incógnitas, como: alguém, uma coisa, algo, muito, pouco, um dia, etc. – ao passo que as crianças com menos de três anos não têm ideia da existência destes termos. Neste ponto, a importância do processamento da fala obriga-nos a abordar uma questão complexa: como normalmente pensamos numa linguagem que, até onde sabemos, os recém-nascidos não dominam, podemos considerar que os bebés não pensam? Bem, primeiramente, é necessário que fique claro que a linguagem, a cognição, a autoconsciência e consequentemente a memória de longo prazo são aptidões interdependentes.

    Dito isso, podemos, de forma telegráfica, responder que antes do surgimento dessas habilidades, as crianças são incapazes de pensar. Elas são movidas por instinto, à semelhança das outras espécies. O outro desdobramento que isso pode suscitar é a questão: a racionalidade e a inteligência são a mesma coisa?

    A racionalidade

    Aqui, a resposta tem de ser categórica: não. A racionalidade e a inteligência são qualidades distintas.

    Primeiro, porque:

    • a inteligência surge antes da razão, e no sentido lato, é entendida como a habilidade de fazer coisas, ou dar solução a determinados problemas que tenham algum grau de complexidade;
    • já a racionalidade, assenta na reflexão, busca compreender a lógica das coisas, o sentido dos próprios atos e de terceiros, visando dar solução a problemas que apresentam um grau de complexidade ainda maior.

    É, acima de tudo, uma qualidade estritamente humana, enquanto a inteligência se encontra em todo o reino animal.

    Os bebês humanos são hábeis em manipular e chantagear, e estas são algumas das demonstrações mais inequívocas da precocidade da inteligência. Porém, ao mesmo tempo que elas exibem a sua ‘prematura’ elevação mental, são inconsequentes – o que é uma demonstração clara da ausência de raciocínio.

    A linguagem e a amnésia infantil

    Voltando à linguagem, surge outra grande questão: já que os outros animais não falam nenhuma língua conhecida pelo homem, podemos considerar que existe um idioma comum dentro de cada espécie? A existência de uma linguagem que permite a comunicação dentro de cada espécie é a melhor ou mais lógica explicação que temos para compreender a intrigante interação que vemos nos diferentes grupos da fauna.

    Como os humanos, boa parte das outras espécies vivem em comunidade, sendo muitas vezes a única forma de se protegerem das investidas de predadores. Um dos vários indícios que apontam para a existência de línguas não-humanas no reino animal é a resposta coordenada que vemos quando um bando de leões decide abater uma presa.

    Ou ainda, quando numa manada de herbívoros, apenas um animal detecta a aproximação de um predador, o que muitas vezes vemos é que ele emite algum tipo de alerta aos demais sobre a iminência do perigo, muitas vezes sem recorrer ao susto. Isto, por sua vez, levanta mais uma questão curiosa: se nascemos com instinto, à semelhança dos outros animais, porque temos tanta certeza que alguns anos depois evoluímos para a racionalização?

    O desenvolvimento cogntivo

    Bem, o desenvolvimento cognitivo é justamente isso – a evolução da inteligência da sua forma mais básica para uma forma superior – a racionalização. E as evidências a nosso favor falam por si e são esmagadoras.

    Pois, embora muitas espécies exibam feitos e certas atitudes extremamente engenhosas, como a organização das formigas, a estratégia de caça dos felinos, as habilidades de construção dos pássaros, a astúcia dos primatas, etc. – as suas aptidões não visam mais do que garantir algum tipo de proteção, procriar e arranjar mantimento para o preciso momento; ao passo que o homem vai mais longe, usando o poder da sua conha craniana para transformar a natureza de todas as maneiras possíveis, e subjugar todas as outras espécies, independentemente do tamanho e da força.

    E embora as outras espécies tenham linguagem, consciência e memória, é precisamente a falta de cognição que as torna irracionais. Porém, mesmo no que concerne a linguagem, a comunicação escrita é um dos nossos grandes diferenciais.

    Uma prova disso é o ritmo assustador conforme evoluímos desde a invenção da escrita cuneiforme, comparado a todo o resto da história antes dela. Outra evidência nesse sentido é o que vemos nos nossos dias: as comunidades humanas cujos estilos de vida estão mais próximos do modo primitivo são aquelas que não conhecem qualquer forma de linguagem escrita.

    Este texto sobre amnésia infantil (suas causas) foi escrito por Manuel Marques. É editor, escritor, ensaísta e pesquisador. Nasceu em 27 de dezembro de 1990, em Malange – Angola. Atualmente vive em Luanda.

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